
Cristiano começou a bordar após ser acometido pelo lúpus e ficar impossibilitado de brincar o carnaval. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Em um passe de mágica, chega o carnaval. Cabelereiras são coroadas rainhas, pedreiros viram reis, agricultores são ordenados guerreiros. Há, contudo, aqueles que precisam se dedicar durante todo o ano para tecer esta realidade fantástica: são os artesãos mestres na alta costura do maracatu de baque solto. Procedimento extremamente complexo, a confecção da gola do caboclo de lança, figura emblemática da cultura brasileira, pode levar até um mês, embora, ao invés de garantir o sustento, costume gerar prejuízo para quem o executa.
Debaixo da mesa da sala, Cristiano Salú, artesão do Maracatu Piaba de Ouro, acomoda um pequeno ventilador, a quem confia a função de atenuar o desconforto de 12 horas de trabalho diárias. “Tem que ter amor. Eu passo cerca de 25 dias costurando, de 10 a 12 horas por dia, e algumas pessoas querem me comprar uma gola por R$ 600 reais, mas só custo para produzir é de R$ 300, comigo muitas vezes tirando dinheiro do meu bolso. Não valorizam nosso trabalho”, desabafa Salú, sem interromper a costura.

Produção da gola tem várias fases, passando por costureiro, desenhista e bordador. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Filho do mestre Salustiano, Cristiano domina o bordado da gola há 17 anos. “Eu detestava costurar, não tinha paciência nem para olhar, mas a dor ensina a parir”, lembra. Com a descoberta do Lúpus, a perda dos dois rins, o sofrimentos das hemodiálises e o posterior transplante de um novo órgão, Cristiano se viu afastado da brincadeira do maracatu. “Eu não fazia nada, vivia em cima de uma cadeira de rodas, enquanto via todo mundo se vestindo para os carnavais. Resolvi fazer uma gola, peguei amor e nunca mais parei, é como uma terapia. Já perdi as contas de quantas já finalizei”, completa.

(Arte: Marília Parente)
Lantejoula por lantejoula, Cristiano vai cobrindo o desenho feito pelo filho mais velho. Leões, peixes, borboletas e até escudos de times de futebol locais ganham vida em suas mãos. “O caboclo escolhe o que vai usar e meu filho, de 18 anos, faz o desenho com giz em cima do veludo e depois passa cera para ele não apagar”, explica. Cheio de fases, o processo conta ainda com o trabalho de uma costureira, que acrescenta o chitão à composição. “Por fim, faço uma franja com lã, para ficar como um babado na ponta do veludo”, comenta Cristiano.

Pedro ressalta que, apesar do volume final do conjunto de sua indumentária, caboclo não sente peso. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Junto à lança, o chapéu e o matulão, a gola compõe um conjunto que pesa entre 25 kg e 50 kg no corpo do caboclo de lança. “Quando a roupa pega suor, chega a pesar 500 kg, mas o maracatu é cheio de segredos. Depois de vestido, o caboclo não sente peso, cansaço ou calor. É como se recebesse os espíritos, os zangados do terreiro de Ogum”, conta Pedro Alexandre de Lima, artesão do Maracatu Cambinda Brasileira, de Nazaré da Mata, na Zona da Mata Norte de Pernambuco.
Espiritualidade
Pedro concilia o trabalho de segurança ao de artesão, função exercida de forma solitária na oficina do Cambinda, que conta com um conjunto de cerca de 60 caboclos de lança. “Alguns, até hoje, conservam a tradição de não mostrar suas golas antes do carnaval e não querem que eu trabalhe nelas na casa do maracatu, devido ao grande fluxo de pessoas. Isso acontece porque antigamente os caboclos mantinham suas identidades secretas, para duelarem com os de outras nações”, explica.

Zé Estevão é um dos caboclos de lança mais antigos da tradicional Cambinda Brasileira. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Sete dias antes do carnaval, alguns caboclos ainda colocam os cravos, que carregam na boca durante as festas, no terreiro. “Ele só tira de perto do pai ou mãe de santo no sábado de manhã”, afima Pedro. Outro costume é o de dormirem separados da esposa, sem beber e fumar até o início da folia. “O caboclo se prepara para fazer um carnaval tranquilo, sem que nada ruim aconteça. É uma forma de buscar proteção na brincadeira”, acrescenta Zé Estevão, um dos mais antigos caboclos de lança da Cambinda Brasileira.
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