Clicky

Música Alternativa • 03/02/2020 - 14:57 • Atualizado em: 03/02/2020 - 15:23

Nos 25 anos do Rec-Beat, Gutie passa o festival a limpo

Em entrevista ao LeiaJá, o criador do evento relembra o início de tudo e comenta a importância da música contemporânea no meio do Carnaval pernambucano

por Geraldo de Fraga
Arthur Souza/LeiaJá Imagens Gutie comanda o Rec-Beat há 25 anos (Arthur Souza/LeiaJá Imagens)

Em seu escritório, no centro do Recife, Antonio Gutierrez vive rodeado de crachás, pôsteres, camisetas e outras recordações do festival criado por ele lá na década de 90. São 25 anos a frente do Rec-Beat, evento de música alternativa que acontece no meio da maior festa do Brasil: o Carnaval. Começou em Olinda e, desde 1999, acontece no Recife. No dia em que recebeu a reportagem do LeiaJá, Gutie tinha acabado de anunciar mais uma atração deste ano: Liniker e os Caramelows e comemorava a repercussão positiva da notícia nas redes sociais. Após mais de duas décadas, o homem segue incansável, e olhando para o futuro.

LeiaJá - Mas vamos começar do começo: como foram as primeiras edições?

Eu já fazia umas festas quando a cena mangue começou, chamada ‘projeto rec beat’ no Recife Antigo. E chegou um momento em que eu ia pra Olinda, onde o Carnaval é diurno, e quando dava umas 18h, já caia a movimentação. Imaginei que seria legal que tivesse uma atração para prosseguir na folia. Então, comecei a programar no Centro Luiz Freire (bairro do Carmo), cobrando ingresso.

Aí, em 1997, quando Chico (Science) morreu, eu estava no México com o Mundo Livre S/A, e tinha deixado um amigo organizando as coisas aqui. Quando cheguei, ele disse que desmobilizou tudo, por conta da morte e pensei: ‘se tem uma coisa que Chico ia querer era que a gente fizesse’. Em três dias remontei tudo e mantive o evento. Eu acho que, sem essa decisão, o festival nem existisse mais. Acho até que o Rec Beat nasceu ali. 

LeiaJá - Pode-se dizer que a história do Rec-Beat se confunde com a cena mangue?

Era um evento criado para dar vazão a um tipo de música que não estava na rua ou no rádio. De palco, só tinha o Abril pro Rock. As pessoas vinham para Recife achando que encontrariam aquela cena musical em todos os cantos e não era assim.

LeiaJá - Houve uma ideia de que o evento não combinasse com o Carnaval?

Quando eu comecei a trazer atrações não carnavalescas, teve resistência. Em um dos anos, a Sodeca (Sociedade Olindense de Defesa da Cidade Alta) teve que me autorizar a fazer o Rec-Beat. Me chegavam críticas. Alguns jornalistas publicavam ‘pra quem não curte o Carnaval, tem o Rec-Beat’ e eu dizia ‘não velho, é ao contrário, é pra quem curte e quer prolongar a folia’. Nunca foi dissociado do Carnaval. Eu sempre vi muito claro a diversidade da festa. A democracia, a espontaneidade, a possibilidade de caber tudo sempre foi muito evidente. Desde o começo, tive a ideia de ser um complemento e não uma corrupção da festa.

LeiaJá - O Rec-Beat saiu de Olinda e foi para o Recife. Como se deu essa migração?

Em uma reunião na Prefeitura, o então secretário de Cultura, Raul Henry, me perguntou se eu não queria levar o Rec-Beat para o Recife. Fomos para a rua da Moeda e aí se tornou gratuito. Ali foi ganhando impulso. E o que era uma cena pernambucana foi expandida para uma cena brasileira e afro-latina. Hoje é internacionalizado. A gente antecipa muitos nomes que estouram depois, é uma plataforma de lançamento para bandas não conhecidas terem contato com o grande público.

LeiaJá - Fica claro que o Rec-Beat é o polo em que o público é mais aberto à música nova.

Acho que isso o festival construiu. Não era assim. Construímos um conceito e hoje as pessoas já esperam ouvir música nova. Agora é mais fácil ter acesso às bandas anunciadas, com a internet, o povo já vai sabendo o que vai ver. Antes, o pessoal ia às cegas. Com o tempo, essas surpresas positivas se tornaram padrão. Criamos uma marca relacionada a boa música, experimentação, ousadia, diversidade, mas tradição também, como Erasmo Carlos e Odair José. Hoje é comum encontrar pessoas que acompanham o Rec-Beat há tempo. E a gente renova o público. 

LeiaJá - Como é feita a curadoria?

O festival é muito autoral. O Rec-Beat é a forma como eu vejo música, é a minha cara. Por sorte, sou um cara muito aberto pra música. Ouço brega, clássico, gosto de tudo. Consigo encontrar valor em todos os gêneros. Fomos o primeiro festival a programar o brega funk, por exemplo. Entendemos que é uma manifestação cultural espontânea (a programação já contou com Mc Tocha e a dupla Shevchenko e Elloco).

É uma forma de mostrar que aquilo é respeitado por nós. Acho essa cena tão importante quando o Manguebeat, que também era periférico. Chico era de Peixinhos e Fred 04 de Barra de Jangada. A gente tem que estar atento.

LeiaJá - O trabalho deve ser imenso.

Como já faço isso há muito tempo, vou acompanhando ao longo do ano, vou pra festivais e feiras de música. Fiz uma curadoria, um dia desses, que escutei exatas 1000 bandas. Procuro fazer um recorte do momento, do que está acontecendo, montar um mosaico. Mas, às vezes, o disco é bom e o show não, a performance não acompanha o trabalho. A performance é uma coisa que levo em conta mesmo. Já deixei de programar ou esperar o artista melhorar o show. Porque isso seria ruim para o artista e pra gente.

LeiaJá - O evento também tem um forte apelo visual, não é?

O Rec-Beat não tem cuidado só com a estética sonora. Temos um VJ no palco e nosso painel é um suporte para projeções conceituais. Desde 2013, que a gente chama um artista plastico para criar a ilustração que pauta todas as peças de divulgação. Tem que estar tudo dentro de um conceito que a gente valoriza.

LeiaJá - Você consegue brincar a folia com tanta coisa pra fazer?

Nesses 25 anos, minha fantasia é o Rec-Beat. Mas é um prazer proporcionar uma celebração musical no meio do maior Carnaval do mundo, ser um elo importante. Hoje, o Rec-Beat é um destino turístico, somos um complemento que nenhum Carnaval tem. Planejo o ano todo. Terminando a programação, já começo a pensar em 2021.

LeiaJá - Alguns festivais já sofreram com o ‘estrelismo’ de alguns artistas, vocês também?

A minha escolha para a programação não é só por quem faz música boa, tem que ter uma identificação. Não é alguém que chega, sobe no palco, e vai embora. Precisa de uma afinidade conceitual. Dificilmente, eu trouxe um artista que não entendeu onde estava. O nosso palco tem uma mística, e me baseio em depoimentos espontâneos sobre isso. Temos um clima diferente.

LeiaJá - Hoje, o Rec-Beat também é um lugar onde se vê muitas manifestações políticas.

É um espaço livre para o pensamento. Um espaço democrático pela igualdade de direito. Não cabe fascista, não cabe bolsominion, pessoas contra a cultura, contra a educação, que querem direcionar pensamentos. É um palco livre e isso se estende para a plateia. Acaba que somos uma ilha de resistência. 

LeiaJá - Pergunta clichê da entrevista: ‘qual o futuro do Rec-Beat’?

Continuar com esse conceito que desenvolvemos até aqui e que eu acho que está super atual. A gente também tem tido oportunidade de sair do Recife. Pelo terceiro ano, vamos fazer em Caruaru. Esse ano devemos fazer uma edição em São Paulo. 

Serviço

Para a edição desse ano, o Rec-Beat já tem confirmado as seguintes atrações: Sofia Freire, Liniker e os Caramelows, Josyara, Ana Frango Elétrico e Hot & Oreia. O festival acontece de 22 a 25 de fevereiro, no Cais da Alfândega, bairro do Recife. Em Caruaru, a festa é no próximo dia 15, com DJ 440, Gabi da Pele Preta, Frente Cumbiero (Colômbia) e Siba.

Comentários